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Voltar17/03/2022
A primeira
vez que tive contato com ostras na minha vida acho que foi em Olinda, no final
dos anos 80, no início da minha carreira na hotelaria. Espécies locais,
pequenas e muito saborosas, vendidas por unidade na beira da praia, por
ambulantes que as abriam na hora. A gente pedia duas ou três, pra começar, e dependendo
do apetite e da disposição seguia na base do “mais uma!”.
Uma década
depois voltei a ter uma experiência mais contundente com ostras, em Santo
Antônio de Lisboa, Florianópolis. Já em escala comercial, vendidas nos
restaurantes locais, as ostras eram produzidas em pequenas estruturas ainda não
chamadas de fazendas, como hoje, num projeto inicial conduzido pela UFSC
(Universidade Federal de Santa Catarina).
Naquela
ocasião, tive a chance de visitar as instalações de um barraco onde as ostras
eram reproduzidas por uma equipe de estudantes da universidade em fase de
estágio. O projeto ainda era uma novidade que acontecia em escala muito
pequena, mas já promissora.
Mais de
vinte anos se passaram desde o início do projeto da UFSC e muita coisa mudou. A
produção e as fazendas de ostras são uma realidade e a UFSC se tornou uma
referência nacional nesse tema.
O desafio
inicial do projeto foi o desenvolvimento da linhagem de uma espécie exótica, a
Crassostrea gigas, a Ostra-do-Pacífico, visto que essa tinha, e tem, uma
produtividade bem maior que as ostras nativas já existentes na ilha. Se era
para desenvolver um cultivo em escala comercial teria que ser com uma espécie
que tivesse maior produtividade, e foi por isso que a gigas foi a escolhida.
O problema é
que a gigas tinha uma dificuldade natural em se adaptar às condições gerais do
ambiente da ilha, principalmente em relação às constantes mudanças de
temperatura da água, e principalmente ao seu aquecimento mais acentuado durante
os verões. A taxa de mortalidade inicial era muito alta. Todavia, alguns indivíduos
se mostraram resistentes e conseguiram prosperar, mesmo naquelas condições
adversas. O que a equipe de pesquisadores da UFSC fez foi separar esses
indivíduos e “artificialmente” reproduzi-los, acelerando assim o processo de
seleção natural. Foi um trabalho de formiguinha do time da UFSC. Com o tempo o
projeto foi desenvolvendo know-how próprio e hoje o Laboratório de Cultivo de
Moluscos Marinhos da UFSC se tornou um grande produtor e comercializador brasileiro
das sementes, como são chamados os “bebês” de ostrinhas, compradas às dezenas
ou centenas de milhares pelos ostreicultores da região.
Essa
iniciativa fez com que Santa Catarina desse um salto à frente no cultivo de
ostras no Brasil. O Estado é responsável por mais de 95%, e em alguns anos chegou
a atingir 97% , da produção de ostras no Brasil, mais precisamente de fazendas como
as do Ribeirão da Ilha, na chamada Baía Sul, o trecho de mar que fica entre a
ilha e o continente, e de parte da Baía Norte, em Santo Antônio de Lisboa,
local que visitei no final dos anos 90, conforme mencionei no início.
Pra quem não
sabe, o que separa a Baía Norte da Baía Sul é a linda Ponte Hercílio Luz, o
cartão postal da capital catarinense.
Destacando
ainda que há produção de ostras e outros moluscos também em Porto Belo,
Bombinhas, Governador Celso Ramos e Camboriú, todos em Santa Catarina.
Nesse verão
estive no Ribeirão da Ilha e decidi conhecer um pouco mais sobre a
ostreicultura do local.
Ao invés de visitar um grande produtor como as fazendas Ostravagante, Ostra Viva, Atlântico Sul, ou o Paraíso das Ostras, acabei por ter uma experiência muito interessante e acolhedora no rancho do Seu Iris e da Dona Letinha (Marlete), produtores em escala doméstica, que vivem da venda direta aos habitantes da região e pequenos restaurantes locais. Conversar com o Seu Iris e a Dona Letinha, ouvir deles como são cultivadas as ostras, foi uma experiência espetacular e muito instrutiva.
O processo
de cultivo das ostras
Quando a
gente vê as ostras no comércio, ou servidas no prato, seja ao natural ou em
alguma receita mais elaborada, poucos têm ideia de tudo o que ocorreu para que
aquele alimento chegasse até aquele ponto (aliás, como é hábito com quase tudo que
comemos). Muitos, até no meu caso que já conhecia um pouco sobre o cultivo das
ostras, acham que é só colocar as ostrinhas bebês nas lanternas (aquelas
estruturas que a gente vê quando visita o local), esperar um tempo e depois colhê-las.
Eu sequer tinha ideia de quanto tempo demorava para as ostrinhas bebês chegarem
naquele tamanho que conhecemos ao consumi-las. E ainda pensava: será que se
deixar mais tempo na água as ostras crescem ainda mais?
Enfim, tudo
isso o Seu Iris nos contou como é.
Para começo
de conversa nos revelou logo de início quanto tempo dura o ciclo da produção: “...dá
uns 6 a 8 meses” – disse ele. Também nos revelou que até o ponto da coleta
final para a comercialização, as ostras entram e saem da água por volta de vinte
vezes.
Tudo começa
quando as sementes, então com algo entre 1mm a 6mm de diâmetro (na foto ao lado duas "sementes" na palma da mão do Seu Iris), são colocadas
nos chamados berçários. Em cada berçário são postas por volta de 10.000
sementes. Feitas de uma rede tipo mosquiteiro, ou seja, com uma malha muito
fina, os berçários precisam ser retirados da água e lavados com frequência, o
que é feito com jatos de água. Se não lavados, ficam cobertos por algas que impedem
o fluxo de água no seu interior, o que é fundamental para as ostras se
alimentarem e crescerem. As ostras são basicamente animais filtradores. Uma
ostra adulta, por exemplo, é capaz de filtrar até 20 litros de água do mar por
dia, de forma a poder reter o plâncton (microrganismos que fazem parte dos
ecossistemas aquáticos), seu alimento.
Durante esse
processo de limpeza é feita também a separação das sementes que já se encontrem
em tamanho maior, pois apesar de entrarem juntas num mesmo berçário, as
sementes apresentam um padrão irregular de crescimento, ou seja, algumas
crescem mais rápido do que outras. Essa seleção se dá por peneiramento, o que
também evita o natural aglomeração das ostras no berçário, fenômeno que tem
como consequência a morte dos indivíduos que ficam no centro. No peneiramento
são separadas então as ostras maiores, transferidas imediatamente para a sua primeira
lanterna, de malha bem fina.
As lanternas
são estruturas feitas de rede, assim chamadas porque têm um formato que se
assemelha de fato àquelas lanternas antigas. Ao longo do seu corpo a lanterna tem
de 4 a 5 prateleiras, feitas com a mesma rede. É exatamente nessas prateleiras
que ficam dispostas as ostras, para que possam se alimentar (filtrar a água do
mar) e crescer.
Ao longo do processo, as ostras mudam de lanternas ainda mais duas vezes. A cada nova lanterna, a malha da rede é maior e o número de indivíduos por prateleira é reduzido pela metade, de forma que, a cada etapa, eles tenham mais espaço para se desenvolver até atingir o tamanho para a coleta e comercialização.
“Assim como
na criação de gado, é preciso saber a quantidade certa de animais por área,
para que não falte alimento, e eles não cresçam e engordem menos do que
queremos”– nos falou o Seu Iris, fazendo uma analogia entre a ostreicultura com
a pecuária. Ficou claro que o manejo das lanternas, nos diferentes estágios do
crescimento das ostras, é um conhecimento fundamental.
Outra
questão importante é a monitoração da qualidade da água, feito periodicamente
pela CIDASC, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa
Catarina.
No passado,
diversos episódios da chamada maré vermelha, um fenômeno que envolve uma super
proliferação de algas tóxicas (para os seres humanos, mas não para os moluscos)
fez com que as autoridades sanitárias catarinenses desenvolvessem um programa
de monitoração frequente das águas, de forma a poder suportar o adequado
desenvolvimento da pesca e ostreicultura na região.
Fruto desse
aprendizado, toda vez que são detectados níveis elevados de algas ou outras
toxinas, a comercialização dos moluscos é interrompida até que as condições se normalizem
e os animais possam estar novamente em condições de consumo.
Sim, não
estranhe, os animais “se limpam”. Como já disse, uma ostra chega a filtrar 20
litros de água do mar por dia, portanto, o que ocorre é que depois de
normalizada a qualidade da água, os animais precisam apenas de um tempo para
“se limparem” e estarem novamente em condições de coleta e consumo.
Por último,
como esse é um blog que acima de tudo fala de culinária, não poderíamos deixar
de destacar as maravilhas que a Dona Letinha prepara e comercializa no rancho.
Tem o
camarão empanado, o bolinho de siri e o camarula (um combinado feito com anéis
de lula e um camarão, presos por um palito e depois empanado), todos prontos e
congelados para levar e fritar em casa.
Além, obviamente, das maravilhosas ostras frescas, vendidas por unidade.
Difícil
resistir à tentação do passeio e dos quitutes da Dona Letinha. Aliás, segue aqui o link para a localização do rancho:
Rod. Baldicero Filomeno, 13917 - Ribeirão da Ilha, Florianópolis - SC
100g de
ostras (cerca de 6 unidades) da espécie Crassostrea gigas, que é a cultivada em
Santa Catarina, contém cerca de 2,66mg de zinco, além de 6,57g de proteínas,
1,62g de gordura, 0,195g de ômega 3, 59,3mg de cálcio, 81,37mg de magnésio e
153,14mg de potássio (Fonte: Epagri)
É difícil
falar em ostras sem que as pessoas logo as associem à sua fama afrodisíaca. Saltam
logo as histórias de personagens como Giacomo Casanova, o veneziano conhecido por
ser um grande amante, consumidor diário de ostras em seu desjejum.
Na verdade,
estudos científicos já comprovaram que o consumo de ostras, assim como o de
outros alimentos considerados afrodisíacos, tem impacto normal no estímulo da
libido, nada de extraordinário.
No caso das
ostras, isso se deve muito ao seu teor de zinco, mineral necessário ao
desenvolvimento da testosterona, o principal hormônio sexual masculino.
Aliás,
nestes tempos em que se fala muito sobre o sistema imunológico, é importante
que se diga que o zinco desempenha papel fundamental em relação a ele, pelo
fato de as células do sistema imune apresentarem altas taxas de proliferação, e
por esse mineral estar envolvido na tradução, no transporte e na replicação do
DNA.
Enfim, fato
é que não precisa nenhuma razão a mais para se degustar esse alimento saboroso
e tão cheio de possibilidades.
Mas recomendamos que o faça sempre em locais onde você tenha a segurança de que
as ostras são frescas, pois isso é o mais importante.
Sobre o
autor: André Victória da Silva é Sócio Fundador e Head de Estratégia e Inovação
da Culinar, a criadora e proprietária da Tarimba na Cozinha.
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Imagem de Capa: Rancho do Seu Iris e da Dona Letinha (Direitos
reservados à Tarimba na Cozinha).
Imagens no copo do texto: Sementes de ostras e Lanternas de
criação de ostras (Direitos reservados à Tarimba na Cozinha).